Nos dois últimos dias do nosso curso, voltamos a nossa atenção e fixamos o nosso pensamento naquilo que, em boa parte, eu chamaria de o lado teórico deste difícil e complexo problema. Tentamos compreender como se verificam as diferenças de natureza. Tentamos intuir a sublime idéia segundo a qual este mundo está fadado a se desenvolver partindo do simples germe da vida doado por Deus, até igualar a imagem d'Aquele de quem proveio. A perfeição dessa imagem, como vimos, somente pode ser alcançada por meio da multiplicidade de objetos finitos, consistindo a perfeição nesta multiplicidade; mas também vimos que esta mesma; multiplicidade estava necessariamente implicada na "limitação de cada objeto. Em seguida constatamos que em virtude da lei de crescimento, deve haver a um só tempo no universo diversas espécies de natureza interior em evolução. Como tais naturezas acham-se todas em uma etapa diferente da evolução, não podemos exigir o mesmo de cada uma delas, nem esperar que desempenhem todas as mesmas funções. A moral deve ser estudada do ponto de vista de quem vai praticá-la. Ao se decidir o que é bom ou mal para um determinado indivíduo, deve-se levar em conta o estágio de crescimento alcançado pelo indivíduo em questão. O bem absoluto existe somente em Ishvara; o certo e o errado que nos cabem são relativos e dependem do estágio da evolução alcançado por cada um.
Esta tarde, vou tentar aplicar semelhante teoria à conduta da vida. Devemos verificar se, com a direção que imprimimos aos nossos estudos, chegamos a uma concepção racional e científica da moral, a fim de que não mais soframos os efeitos da confusão que se observa hoje em dia. Se, por um lado, sabemos que os ideais são arvorados como sendo aquilo que se deve buscar reproduzir na vida, por outro descobrimos que há uma enorme incapacidade de sequer tomá-los por ideais; constatamos uma divergência das mais penosas entre a f é e a sua prática. A moral nada é sem as suas leis; como tudo o mais num universo que é expressão da mente divina, a moral também apresenta as suas condições e limitações. Desse modo, não se deve descartar a possibilidade de ver surgir um cosmos do atual caos moral e aprender ensinamentos práticos de moral, o que permitirá à índia crescer, se desenvolver, tornar-se de novo um exemplo para o mundo, reproduzindo a sua antiga grandeza, manifestando uma vez mais a sua antiga espiritualidade.
Existem três escolas principais de moral entre os povos ocidentais. Devemos lembrar que o pensamento ocidental vem influenciando largamente a índia, especialmente a nova geração, na qual se concentram as suas esperanças. É preciso, todavia, saber alguma coisa a respeito destas escolas de moral existentes no Ocidente, as quais divergem por suas teorias e ensinamentos, quando mais não seja para aprender a evitar as suas limitações e a retirar delas o que de bom elas tenham a oferecer.
Uma destas escolas afirma que a revelação de Deus é a base da moral. A objeção contraposta a esta asserção é a de que nesse mundo existem muitas religiões e que cada religião possui a sua própria revelação. Em vista dessa variedade de escrituras religiosas, argumentam, torna-se difícil afirmar que apenas uma das revelações é que se deve considerar como fundada na autoridade suprema. Que cada religião considere a sua própria revelação como suprema é natural, mas como, nessa controvérsia, o estudante deverá tomar a sua própria decisão?
Diz-se também que há um defeito inerente a esta teoria, afetando todos os padrões morais assentados em uma revelação dada de uma vez por todas. Para que uma lei moral seja útil à época a que se destina, é preciso que ela possua uma natureza adequada a essa época. À medida que uma nação se desenvolve e atravessa milhares e milhares de anos, descobrimos que aquilo que se mostrava adequado à nação na sua infância já não é mais na maturidade; muitos preceitos que uma vez foram úteis já não se mostram como tais hoje em dia, quando são outras as circunstâncias do tempo. Nos deparamos com esta dificuldade e a reconhecemos ao lidar com as escrituras hindus, pois nelas encontramos uma ampla variedade de ensinamentos morais adequados a todas as etapas da evolução das almas. Há preceitos tão simples e claros, tão definidos e categóricos, que até mesmo a alma mais jovem pode aproveitá-los. Mas também descobrimos que os Rishis não viam estes preceitos como adequados à educação de uma alma altamente desenvolvida. Descobrimos também que, na Sabedoria Antiga, os ensinamentos eram transmitidos apenas a umas poucas almas evoluídas, ensinamentos a essa época absolutamente ininteligíveis para as massas. Tais ensinamentos eram restritos ao círculo fechado dos que haviam alcançado a maturidade da raça humana. A pluralidade das escolas de moral foi sempre tida pela religião hindu como necessária ao progresso humano. Mas sempre que, numa grande religião, esse princípio não é confirmado, observa-se uma certa moralidade teórica inadequada às crescentes necessidades do povo, seguindo-se daí, portanto, um certo sentimento de irrealidade, um sentimento de que não é mais razoável permitir agora o que se permitia na infância da humanidade. Por outro lado, encontra-se aqui e ali, em todas as escrituras, preceitos de um caráter tão elevado, que são poucos aqueles que se acham em condições não de observá-los, mas de tentar observá-los. Quando um mandamento apropriado a um semi-selvagem é declarado universalmente obrigatório, não obstante provir ele da mesma origem que o mandamento destinado ao santo e dirigir-se aos mesmos homens, insinua-se então um sentimento de irrealidade do qual resulta a confusão de idéias.
Uma outra escola baseia a moral na intuição, afirmando que Deus fala para todos os homens através da voz da consciência. Alega ela que a revelação atinge todas as nações, mas nem por isso estaríamos sujeitados a um livro especial; a consciência é o árbitro final. A objeção feita a esta teoria é a de que a consciência de um homem tem tanta autoridade quanto a de um outro. Se as nossas consciências diferenciam-se umas das outras, então quem poderá decidir entre uma consciência e outra, entre a consciência do pobre de espírito e a consciência do místico iluminado? Se declaramos admitir o princípio da evolução e que devemos tomar como juiz a mais alta consciência da raça, então a intuição não se sustenta como base sólida para a moral e a rocha sobre a qual pretendíamos edificar será destruída precisamente pelo fator variedade. A consciência é a voz do homem interior, daquele que recorda as experiências de seu passado, e, a partir dessa experiência imemorial, é capaz de julgar hoje uma determinada linha de conduta. A assim chamada intuição é o resultado de incontáveis encarnações; do número de encarnações depende a evolução de uma mentalidade que determina, para o homem presente, a qualidade da consciência; uma tal intuição não pode, pura e simplesmente, ser tomada como um guia seguro para as questões de moral. Necessitamos de uma vez imperiosa, não de uma confusão de línguas. Necessitamos da autoridade do mestre, não do palavrório confuso da multidão.
A terceira escola de moral é a escola do utilitarismo. A visão desta escola, tal como geralmente apresentada, não é razoável nem satisfatória. Qual é a máxima desta escola? "O bem é aquilo que contribui para a maior felicidade do maior número". Trata-se de uma máxima que não resiste à análise. Notem as palavras "maior número". Tal restrição faz dessa máxima algo que a inteligência iluminada deverá rejeitar. A maioria não vem ao caso, quando estamos a tratar da humanidade. Uma só vida é a sua raiz, um só Deus a sua meta; não se pode separar a felicidade de uma pessoa e outra. Não se pode romper a sólida unidade e, dirigindo-se para a maioria, conceder-lhe a felicidade, deixando de lado a minoria. Esta teoria não leva em conta a incontestável unidade da raça humana e, conseqüentemente, a sua máxima não se sustenta como uma base para a moral. Não se sustenta porque, em razão desta unidade, um homem não pode ser completamente feliz se todos os homens também não o forem. A sua felicidade deixa de ser completa quando um só ser é deixado à margem e se sente infeliz. Deus não faz distinções entre os indivíduos e os grupos, mas, ao contrário, concede uma só vida para a humanidade e para todas as criaturas. A vida de Deus é a única vida do universo; e a felicidade perfeita dessa vida é a meta do universo.
E novamente toma-se a verificar uma falha nesta máxima, considerada enquanto móvel propulsor, porque ela se dirige apenas às inteligências desenvolvidas, ou seja, às almas altamente evoluídas. Se nos dirigirmos ao homem comum do mundo, ao indivíduo egoísta, e dissermos a ele: "Você deve levar uma vida de auto-sacrifício, virtude e moral perfeitas, até mesmo se isso lhe custar a vida", o que podemos esperar como resposta? Tal indivíduo diria: "Por que deveria eu fazer isso em prol da raça humana, de pessoas do futuro a quem jamais verei?" Se tomarmos isso como um padrão para o bem e o mal, então o mártir se transforma no maior dos idiotas que a humanidade jamais produziu, já que ele joga fora a possibilidade de ser feliz sem nada pôr em seu lugar. Não se pode levar em consideração um ta! critério, a não ser que o limitemos aos casos em que se tenha uma alma nobre, altamente desenvolvida e, ainda que não inteiramente espiritual, dotada de uma espiritualidade nascente. Há homens como William Kingdom Clifford, em cujas mãos a doutrina utilitarista sofreu uma sublime elevação de tom. Clifford, em seu ensaio sobre a Ética, invoca os ideais mais sublimes e proporciona as mais nobres lições de auto-sacrifício. E ele não tinha a menor crença na imortalidade da alma; avizinhando-se da morte, pôs-se ao lado do túmulo, acreditando quê tudo terminava ali e predicando que a mais alta virtude era a única coisa que um homem verdadeiro poderia praticar, já que ele a devia a um mundo que tudo lhe havia proporcionado. Muito poucos, entretanto, seriam capazes de encontra inspiração tão nobre em um panorama tão sombrio; necessitamos de uma visão do bem e do mal capaz de inspirar a todos, de comover a todos, e não apenas àqueles que menos necessitam de seu impulso.
O que restou de toda essa controvérsia? Confusão, se não algo pior. Uma aceitação meramente exterior da revelação, ao lado da sua desconsideração em termos práticos. Temos, na verdade, uma revelação modificada pelo uso. Eis aí o critério que sobra de toda essa confusão. A revelação é encarada teoricamente como autoridade, porém na prática ela é desconsiderada, visto que resulta muitas vezes imperfeita. Assim, achamo-nos em face de uma posição insustentável, ou seja, aquilo que é postulado como autoridade é rejeitado na vida, e então passa-se a viver uma existência ilógica, uma existência irrefletida, sem nenhuma lógica ou razão, sem ter por base nenhum sistema racional e definido.
Será que não encontraríamos nesta idéia do Dharma uma base mais satisfatória, uma base sobre a qual assentar de modo inteligente a conduta da vida? Por mais baixo ou mais alto que seja o estágio da evolução alcançado pelo indivíduo, a noção de Dharma nos possibilita a concepção de uma natureza interior que se desenvolve por si mesma no decorrer de seu crescimento; vimos que o mundo, em sua totalidade, é algo que evolui — que evolui do imperfeito para o perfeito, do germe para o homem divino, etapa por etapa, por todos os graus da vida manifesta. Essa evolução encontra a sua causa na vontade divina. Deus é a força motriz, o espírito que a tudo guia. É esta a Sua maneira de edificar o mundo. É este o método adotado por Ele para que os Espíritos que são Seus filhos possam reproduzir a imagem do Pai. Essa afirmativa não implicaria precisamente em uma lei? Ou seja, de que o bem é tudo aquilo que colabora com a vontade divina para a evolução do universo e impele essa evolução do imperfeito para o perfeito; de que o mal é aquilo que retarda ou frustra esse desígnio divino e tende a fazer com que o Universo regrida para um estágio anterior da evolução? A vida passa do mineral ao vegetal, do vegetal ao animal, do animal ao animal-homem, do animal-homem para o homem divino. O bem é tudo o que dirige a evolução rumo à divindade; o mal é tudo o que a faz regredir ou o que impede o seu progresso. Se agora considerarmos por um momento essa idéia, talvez cheguemos a uma noção mais clara do que é essa lei e não mais nos preocuparemos quanto a esse aspecto relativo do bem e do mal. Imaginemos uma escada. Suponhamos que um de nós tenha subido nela cinco degraus, um outro dois degraus e que um terceiro tenha permanecido no chão. Para o que subiu cinco degraus, colocar-se junto do que subiu dois degraus seria o mesmo que descer; para o que ficou no chão, porém, seria subir. Suponhamos que cada degrau da escada representa uma ação: esta seria ao mesmo tempo moral e imoral, segundo o ponto de vista pelo qual a considerássemos. Um determinado ato pode ser considerado moral do ponto de vista de um estúpido, porém ele seria imoral do ponto de; vista de um homem altamente cultivado. Para um homem situado no degrau mais alto da escada, descer até o mais baixo seria ir contra o sentido da evolução, sendo tal ação, portanto, imoral para ele; para outro, entretanto, passar do estágio mais inferior para esse primeiro degrau é moral, pois isso concorda com o sentido da sua evolução. Assim, pode ser que duas pessoas estejam no mesmo degrau da escada, mas se a primeira delas chegou até aí subindo e a segunda descendo, trata-se de uma ação moral para a primeira e imoral para a segunda. Uma vez compreendido isso, começaremos por descobrir a nossa lei. Suponhamos dois jovens: o primeiro deles é esperto e inteligente, porém muito afeiçoado aos prazeres do corpo, do paladar, e a tudo o que lhe proporciona um gozo sensual. O outro jovem demonstra possuir uma espiritualidade nascente, é brilhante, ágil e inteligente. Suponhamos ainda um terceiro jovem, dotado de uma natureza espiritual consideravelmente desenvolvida. Temos então três jovens. A que incentivos devemos recorrer para ajudar a evolução de cada um? Comecemos pelo primeiro, aquele dado aos prazeres sensuais. Se eu lhe dissesse: "Meu filho, você deveria viver sem o menor egoísmo, você deveria levar uma vida ascética", ele encolheria os ombros e seguiria em frente, e eu não o teria ajudado a galgar um só degrau da escada. Se eu lhe dissesse: "Meu jovem, os teus prazeres são prazeres que só te proporcionam uma satisfação momentânea, eles arruinarão o teu corpo e destruirão a tua saúde; pense naquele homem precocemente envelhecido por uma vida de licença sexual; a sua sina será idêntica, se continuares a viver assim; não seria melhor que consagrasses uma parte do teu tempo à educação da mente, a fim de aprender algo, a fim de que sejas capaz de escrever um livro ou compor um poema, ou então se dedicar a alguma empresa? Pode ser que tu ganhes dinheiro e venhas a ter saúde e fama, e com isso poderás satisfazer a tua ambição; poupe umarúpia de vez em quando para comprar um livro, ao invés de gastá-la com um jantar". Dirigindo-se a ele desse modo, eu o estimulo com a idéia de ambição; ambição egoísta, reconheço, mas é que ainda não existe nele a faculdade de responder ao chamado da renúncia. O móvel da ambição é egoísta, mas se trata de um egoísmo mais elevado que o do prazer sensual que o animava, além de contribuir, na medida em que lhe proporciona alguma orientação intelectual, para elevá-lo acima dos brutos, para situá-lo no mesmo nível daquele que está desenvolvendo o seu intelecto, e com isso ajudá-lo a subir mais na escala da evolução — este é um ensinamento mais sábio para ele do que a impraticável abnegação. Fornece-lhe não um ideal perfeito, mas um ideal na medida da sua capacidade.
No entanto, ao dirigir-me ao jovem dotado de uma espiritualidade nascente, devo apresentar-lhe o ideal de servir a pátria, de servir a índia; devo fazer com que ele veja nisso o seu objetivo e a sua meta, mescla de egoísmo e desinteresse, aumentando assim a sua ambição e contribuindo para a sua evolução. E ao dirigir-me ao jovem que possui uma natureza espiritual, deixarei de lado todas as motivações inferiores, invocando pelo contrário, a eterna lei do auto-sacrifício, a devoção à única Vida, a adoração aos Grandes e a Deus. Devo ensinar-lhe o Discernimento e a Imparcialidade, contribuindo assim para que a natureza espiritual desenvolva as suas infinitas possibilidades. Assim, compreendendo a moral como algo relativo, podemos efetivamente trabalhar. Se fracassamos ao ajudar as almas, seja qual for o seu nível, é porque somos mestres inexperientes.
Em todas as nações há determinadas coisas que se consideram males, como o assassinato, o roubo, a mentira, a mesquinharia. Tudo isso é tido por crime. Essa é a idéia corrente. Entretanto, ela não é inteiramente confirmada pêlos fatos. Até que ponto, na prática, estas coisas são consideradas morais ou imorais? Por que são consideradas males? Porque as massas da nação alcançaram um certo estágio da evolução. Porque a maior parte da nação encontra-se quase no mesmo nível de crescimento e, por isso, considera essas coisas como males, como contrárias ao progresso. O resultado é que a minoria, situando-se abaixo desse estágio, é considerada como sendo formada por "criminosos". A maioria alcançou um estágio superior da evolução e é a maioria quem faz a lei; aqueles, então, que não conseguem atingir sequer os níveis inferiores da maioria são denominados criminosos. Dois tipos de criminosos apresentam-se à nossa consideração. Sobre o primeiro, não conseguiremos causar qualquer impressão apelando para o seu senso de bem e mal. O público ignorante refere-se a eles como criminosos consumados. Mas essa visão é equivocada e pode ter conseqüências lamentáveis. Pois eles não passam de almas ignorantes, ainda não crescidas, almas infantis, crianças na Escola da Vida, e não é pisando neles ou insistindo em maltratá-los ainda mais que os ajudaremos, sob o pretexto de que mal se diferenciam dos brutos. Devemos usar todos os meios à nossa disposição, tudo aquilo com que possa contribuir a nossa razão para orientar e educar essas almas infantis, discipliná-las para uma vida melhor; não os tratemos como criminosos acabados porque eles não passam de bebes em um berçário.
O outro tipo de criminoso é aquele que sente um tanto de remorso e arrependimento após o crime cometido, aquele que sabe ter agido erradamente. Eles se situam num nível superior e podem ser ajudados a resistir ao mal no futuro precisamente pelo sofrimento que lhes foi imposto pela lei humana. Falei da necessidade de toda a sorte de experiências a fim de que a alma possa discernir entre o bem e o mal. Necessitamos ter experiências do bem e do mal até que possamos distinguir um do outro, porém não mais. A partir do momento em que as duas linhas de ação se fazem distintas para nós e sabemos que uma delas é boa e a outra má e, então, escolhemos o mau caminho, estaremos cometendo pecado, estaremos contrariando uma lei que conhecemos e admitimos. O indivíduo que se acha nesse estágio comete pecado porque os seus desejos são fortes, impelindo-o a escolher o mau caminho. Ele sofre e é bom que sofra se ele se entrega a estes desejos. A partir do momento em que o conhecimento do mal intervém, ceder aos impulsos significa uma degradação deliberada. A experiência do mal somente é necessária quando o mal ainda não foi reconhecido como tal, somente para que se chegue a esse reconhecimento. Quando um indivíduo tem que optar entre duas condutas e lhe parece que ambas não são moralmente diferentes, então ele poderá adotar uma das duas sem nenhum risco de que venha a cometer um erro. Mas a partir do momento em que sabe que uma coisa é má, é uma traição a si mesmo permitir que o bruto sobrepuje o Deus que há nele. Ê isso que é em realidade o pecado; é essa a condição da maioria, embora não de todos os pecadores de hoje.
Dito isso, consideremos certas faltas um pouco mais de perto. Seja o caso do assassínio: descobrimos que o senso comum da comunidade faz uma distinção entre matar e matar. Se um indivíduo toma de uma faca em desespero e apunhala o seu inimigo, a lei o qualifica de assassino e o enforca. Se milhares de homens tomam de várias facas e apunhalam outros milhares de homens, esse modo de matar é então denominado guerra. A glória e não a punição aguarda quem assim mata. A mesma multidão que vilipendia o assassino de um só homem, aplaude os homens que mataram dez milhões de inimigos. Por que essa estranha anomalia? Como podemos explicá-la? Há algo que possa justificar semelhante reação da comunidade? Existe alguma distinção entre os dois atos que possa justificar a diferença de tratamento? Existe. A guerra é algo contra o qual a consciência pública se levanta cada vez mais, sendo este, aliás, um fato que deveríamos por sua vez levar em consideração. Mas se devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para impedir a guerra, para semear a paz e educar os nossos filhos no amor à paz, subsiste ainda assim uma distinção real entre a conduta daquele que mata por perversidade pessoal e a daquele que mata na guerra; esta diferença tem conseqüências tão profundas que vou me alongar um pouco mais sobre ela. No primeiro caso, um rancor pessoal é satisfeito e a satisfação é encontrada. No segundo, o indivíduo, ao matar outro, não está satisfazendo nenhum desejo pessoal, nem agindo por sua própria conta ou visando alguma vantagem pessoal. Estes matam-se uns aos outros em obediência a ordens que lhes foram ditadas por seus superiores, aos quais cabe a responsabilidade pela legitimidade da guerra. Por toda a minha vida, preguei a paz e esforcei-me por mostrar os horrores da guerra. Todavia, devo reconhecer que, para aqueles que se acham sujeitos a um tal treinamento, há muita coisa de vital importância na mera disciplina das forças militares. O que o soldado aprende? Aprende a obediência às ordens, o asseio, a agilidade, a precisão, a presteza no agir e a disposição de suportar provações físicas sem lamento nem arreglo. Aprende a arriscar a vida e a sacrificá-la em favor de um ideal. Não será esse treinamento algo que tem o seu lugar na evolução da alma? Quando o ideal da pátria inflama o coração, quando por ele a vida é alegremente sacrificada por homens rudes, homens comuns e incultos, por mais grosseiros, violentos e embriagados que sejam, eles estão a passar por uma prova que, em existências futuras, os tornará melhores e mais nobres. Que se pense na frase que um escritor inglês de raro talento, Rudyard Kipling, põe na boca de seus soldados, fazendo-os dizer que lutarão "pela viúva que está em Windsor". Tal frase pode soar um tanto grosseira, mas ela é justa para o homem que passa fome, que sofre mutilações nos campos de batalha, se diante de si ele consegue divisar a sua Rainha-lmperatriz, mãe de milhões de pessoas, e por ela imolar a vida, aprendendo pela primeira vez a beleza da fidelidade, da coragem e da devoção. Eis aí a distinção que, muito vagamente intuída pelo povo, diferencia o assassinato cometido por motivos pessoais da guerra. Num caso, os interesses são pessoais; no outro, pertencem a um eu mais vasto — o eu da nação. Ao tratarmos desta questão da moral permanecemos quase sempre aquém dessa visão. Há muitos casos de roubo, de morte e mentira que a lei do homem não pune mas que a lei do karma prevê e faz recair sobre seu autor. Muitos roubos se disfarçam de comércio, muitas operações fraudulentas se disfarçam de negócios, muitas mentiras cuidadosamente arranjadas são tidas por diplomacia. O crime reaparece sob as formas as mais surpreendentes, oculto e disfarçado, e os homens têm que aprender seguidamente, existência após existência, a autopurificação. Antes de abordar a essência do pecado, devemos agora levar em consideração um outro ponto que eu não posso omitir inteiramente: a questão do pensamento e da ação. Certos atos que um homem comete são inevitáveis. Não sabemos o que estamos a fazer quando nos permitimos pensar numa direção errada. Cobiçamos em pensamentos o ouro do alheio;.a todo momento tomamos, com as mãos da mente, aquilo que não nos pertence. Estamos edificando o Dharma do ladrão. O Dharma é a natureza interna, a natureza interior, e se nós construímos essa natureza interior com maus pensamentos, renasceremos para uma outra existência com um Dharma que nos arrastará aos atos do vício. Tais atos, então, serão cometidos sem qualquer reflexão. Será que fazemos alguma idéia da quantidade de pensamentos que mobilizamos para que um ato seja executado? Podemos represar a água e impedir que ela circule por seu leito, mas tão logo houver um buraco na barragem a água represada escorrerá por ele e arrastará a barragem: passa-se o mesmo com os pensamentos e as ações. Os pensamentos acumulam-se lentamente por trás da represa da falta de oportunidade. Quanto mais pensamos, mais aumenta o fluxo do pensamento por trás da barreira das circunstâncias. Numa outra existência, essa barreira das circunstâncias cederá e o ato será cometido antes mesmo que sobrevenha um novo pensamento. São os crimes inevitáveis que às vezes arruínam uma bela carreira, são pensamentos do passado que vêm dar frutos no presente, é o karma do pensamento acumulado que se manifesta em atos. Se nos deparamos com a oportunidade e temos tempo para refletir, para dizer: "Devo fazer isso?"; então esse ato já não é mais inevitável para nós. A pausa para refletir significa que podemos remanejar esse pensamento para o outro lado e assim fortalecer a barreira. Não há desculpa se cometemos um ato que antes julgamos errado. Tais atos são inevitáveis somente quando cometidos sem reflexão, quando o pensamento pertence ao passado e o ato ao presente.
Chegamos agora à questão fundamental da separação: reside a, na verdade, a essência do mal. No passado, a separação era algo positivo. A poderosa corrente do fluxo vital divino se dividia na multiplicidade; assim se fazia necessário para que fossem edificados os centros individuais de consciência. Enquanto esses centros necessitam aumentar as suas forças, a separação situa-se do lado do progresso. As almas precisam, a certa altura, ser egoístas, não podem prescindir do egoísmo nos primeiros estágios de crescimento. Agora, porém, a lei da vida progressiva para os mais adiantados exige que a separação seja vencida e a unidade buscada. Estamos agora no caminho que conduz à unidade; aproximamo-nos cada vez mais uns dos outros. Devemos agora nos unir, a fim de progredirmos ainda mais. A meta continua sendo a mesma, embora o método tenha se transformado ao longo das etapas da evolução. A consciência pública está começando a reconhecer que não é na separação, mas na unidade que se encontra o verdadeiro crescimento da nação. Tudo fazemos para que o arbitramento seja substituído pela guerra, a cooperação pela competição, a proteção aos fracos pelo seu esmagamento, tudo isso porque a linha da evolução tende agora para a unidade e não para a separação. A separação é o que distingue a decaída na matéria, ao passo que a unidade é o que distingue a ascensão rumo ao Espírito. O mundo está na fase ascendente, embora milhares de almas encontrem-se retardatárias. O ideal do presente é a paz, a cooperação, a proteção, a fraternidade, a assistência. A essência do pecado reside agora na separação.
Esta idéia, no entanto, nos leva a testar uma vez mais a nossa conduta. Será que o ato que praticamos visa ao lucro pessoal ou contribui para o bem geral? Será a nossa existência egoísta e vã ou contribuirá ela para o bem da humanidade? Se for egoísta, então é porque ela é errada, má e contrária ao progresso do mundo. Se estivermos entre aqueles que já sabem quão belo é o ideal da unidade e já compreenderam a perfeição da humanidade tornada divina, então devemos afastar de nós esta heresia da separação.
Ao considerarmos grande parte dos antigos ensinamentos e observarmos a conduta dos Sábios, apresentam-se certas questões relativas à moral que alguns julgam bastante intrincadas de resolver. Menciono isso porque posso sugerir a linha de pensamento que lhes permita defender os Shastras das críticas acerbas e lhes possibilite aproveitar os seus ensinamentos sem que isso venha acarretar maiores confusões de idéias. Um grande Sábio nem sempre é, por sua conduta, exemplo que o homem comum deva se esforçar por seguir. Quando refiro-me a um grande Sábio, penso naquele em quem todo desejo pessoal está morto, que não se sente atraído por qualquer objeto do mundo e cuja vida não consiste senão na obediência à vontade divina, que se oferece a si próprio como um dos canais por meio do qual a força divina possa socorrer o mundo. O Sábio desempenha as funções de um Deus e as funções dos Deuses diferem bastante das funções dos homens. A terra está cheia de toda espécie de catástrofes — guerras, terremotos, fome, peste, epidemias. Qual será a causa delas? Não há qualquer causa no universo de Deus a não ser o próprio Deus, e estas coisas que passam por ser tão terríveis, tão chocantes e penosas são a Sua maneira de nos ensinar quando agimos mal. Uma epidemia dizima milhares de homens em um país. Uma grande guerra dissemina milhares de cadáveres pêlos campos de batalha. Por quê? Porque esse país negligenciou a divina lei do seu crescimento e deverá aprender a sua lição pelo sofrimento, já que não quis aprender pela razão. A epidemia é uma conseqüência do desprezo pelas regras de higiene e saúde. Deus é misericordioso demais para permitir que a lei seja desdenhada pêlos caprichos, as fantasias e os sentimentos do homem comum sem que este se dê conta do que cometeu. Estas catástrofes são obradas pelos Deuses, pêlos agentes de Ishvara que invisíveis por todo o mundo, administram a lei divina como um magistrado a lei civil. Exatamente por serem administradores da lei e agirem impessoalmente, seus atos já não são exemplos que devamos seguir, assim como a decisão de um juiz ao mandar encarcerar um criminoso não pode servir de justificativa para que um simples cidadão se vingue de seu inimigo. Seja, por exemplo, o grande Sábio Narada. Vemo-lo a instigar a guerra, quando duas nações chegaram a um ponto em que o máximo bem-estar de cada uma somente pode ser trazido pela guerra e suas batalhas e pela conquista de uma pela outra. Os corpos perecem e o melhor que pode acontecer a homens que assim morrem é que os seus corpos sejam suprimidos e que, em novos corpos, eles venham a ter maiores possibilidades de crescimento. Os Deuses providenciam uma batalha em que milhares de homens são mortos. Para nós seria um mal imitá-los, pois instigar a guerra visando à conquista, ao lucro ou à ambição, ou a algum objeto em que intervém o interesse pessoal é algo pecaminoso. Não, porém, no caso de Narada, porque Devarishis como ele ajudam a marcha do mundo removendo os obstáculos do caminho da evolução. Saberemos algo acerca das maravilhas e mistérios do mundo quando compreendermos que as coisas que parecem más do ponto de vista da forma são boas do ponto de vista da vida; tudo o que acontece contribui para o bem do mundo. "Há uma divindade que conforma o nosso destino, que o delineia à nossa medida"! Está certa a religião ao afirmar que Deus governa o mundo e dirige as nações, que Ele é quem as conduz e as sujeita ao bom caminho quando dele se apartam.
Um indivíduo absorvido pela sua própria personalidade e atraído pêlos objetos dó desejo, um indivíduo cujo eu é inteiramente Kama, ao cometer um ato instigado por Kama, quase sempre comete um crime; o mesmíssimo ato, porém, cometido por uma alma liberta, livre de todo desejo, e no cumprimento da ordem divina, seria justo. Dada a descrença total em que mergulharam, os homens quanto à ação dos Deuses, tais palavras pode parecer estranhas, mas não há força na natureza que não seja manifestação física de um Deus executando a vontade do Supremo. Essa é a visão correta da natureza. Vemos o lado da forma apenas e, cegados por Maya, o denominamos mal; mas os Deuses, na medida em que rompem as formas, vencem todos os obstáculos que se interpõem no caminho da evolução.
Podemos, agora, entender um ou dois destes argumentos que nos são frequentemente lançados ao rosto por aqueles que têm uma visão superficial das coisas. Suponhamos que um indivíduo, pretendendo cometer um pecado, é dele dissuadido somente pela pressão das circunstâncias; suponhamos que este seu desejo aumente mais e mais; o que é melhor para ele? Ter uma oportunidade para realizar os seus desejos. Cometer um crime? Sim, até mesmo um crime é menos pernicioso para a alma do que a sua idéia fixa a rondar a mente, o desenvolvimento de um câncer bem no coração da vida. Uma vez cometido, o ato se extingue e o sofrimento que se segue ensina a necessária lição, mas o pensamento, pelo contrário, é algo que persiste e se alastra . Compreendemos isso? Se compreendemos, também chegaremos a entender porque achamos nas escrituras um Deus que deixa ao alcance de um homem a oportunidade para que ele cometa o pecado que anseia cometer e que na verdade já cometeu em seu coração. Ele sofrerá, sem dúvida, por este pecado, mas aprenderá pelo sofrimento que recai sobre todo pecador. Tivesse aquele mau pensamento crescido em seu coração e ele se tornaria mais e mais forte e acabaria por aniquilar gradualmente toda a sua natureza moral. Ë como um câncer que, se não é rapidamente extirpado, acabará por envenenar todo o corpo. E mil vezes preferível que tal indivíduo peque e sofra do que, cobiçando o pecado, seja refreado pela mera falta de oportunidade, preparando assim uma inevitável degradação para as existências futuras.
Assim também, se um indivíduo faz rápidos progressos mas ainda assim há uma fraqueza nele oculta ou um Karma ainda não extinto ou malfeitos ainda não expiados, ele não se libertará enquanto perdurar este Karma, enquanto houver ainda uma dívida a pagar. O que de mais misericordioso se pode fazer? Ajudar esse homem a pagar a sua dívida, em meio à angústia e à degradação, para que o sofrimento que se segue à falta possa esgotar o Karma do passado. Isso significa que foi removido do caminho um obstáculo que impedia a nossa libertação e que Deus nos colocou frente a frente com a, tentação para que a última barreira fosse demolida. Não disponho de tempo para desenvolver mais detalhadamente esta linha de pensamento tão fecunda, mas peço que o -façam vocês mesmos e descubram o seu sentido, vejam como ela pode iluminar os problemas obscuros do crescimento, dos pecados dos santos.
Se, depois de assimilado isso, lerem um livro como o Mahabharata, poderão compreender o papel dos Deuses nos negócios do homem; verão os Deuses atuando na tempestade e na luz do sol, na guerra e na paz, e saberão que está tudo muito bem tanto para o homem como para a nação, aconteça o que acontecer, pois a sabedoria mais nobre e o amor mais terno os guiam para a meta fixada.
Mais uma última palavra — palavra esta que me atreverei a dizer-lhes, a vocês que me ouviram com tanta paciência em matéria tão difícil e abstrusa. Há uma advertência ainda mais importante: saibam que existe uma meta suprema e que, no caminho que a ela conduz, os últimos passos não são dos que o Dharma possa guiar. Tomemos as maravilhosas palavras do grande Mestre Shri Krishna e vejamos como, em Seu ensinamento final. Ele se refere a algo mais sublime do que tudo o que nos atrevemos a tocar. E is a Sua mensagem de paz: "Ouvi de novo a Minha palavra suprema, a mais secreta de todas; és o Meu bem-amado, o de firme coração, por isso falarei por teu bem. Que percas o Manas em Mim, sejas meu devoto, sacrifica-te por Mim, prostra-te diante de Mim, e virás a Mim. Abandonando todos os Dharmas, chegues a mim como teu único refúgio; não te faças triste, eu o livrarei de todos os pecados". (Bhagavad-Gita, xviii, 64-66.)
As minhas últimas palavras dirigem-se apenas àqueles cujas vidas se resumem no supremo anseio de se sacrificarem por Ele; eles têm direito a estas últimas palavras de paz e de esperança. O Dharma chega, então, a seu fim. Agora o homem já não deseja mais nada que não o Senhor. Quando a alma alcançou esse estágio da evolução, quando ela já nada solicita do mundo, mas se entrega inteiramente a Deus, quando ela superou toda a urgência do desejo, quando o coração alcançou a liberdade pelo amor, quando o ser inteiro se lança aos pés do Senhor, então é hora de abandonar todos os Dharmas; eles já não nos servem; já não nos serve a lei do crescimento nem o equilíbrio dos deveres nem o exame das nossas condutas. Entregamo-nos ao Senhor. Nada ficou em nós que não seja divino. Nenhum Dharma nos serviria mais, pois unidos a Ele já não somos vidas separadas. Nossa vida está n'E lê, a Sua vida é a nossa; ainda vivemos no mundo, porém não somos mais que seus instrumentos. Estamos inteiramente n'Ele. Nossa vida é a vida de Ishvara e o Dharma já não exerce qualquer influência sobre nós. Nossa devoção nos libertou, pois a nossa vida está em Deus. Eis a: palavra do Mestre. É com esse pensamento que gostaria de lhes deixar.
E agora, meus irmãos, adeus. Nosso trabalho conjunto está terminado. Que me seja dado, após essa apresentação imperfeita de um grande tema, ,lhes dizer: cuidem da idéia contida na mensagem e não rias palavras do mensageiro; abram os corações à idéia esqueçam a imperfeição dos lábios que a pronunciaram. Lembrem-se de que, à medida que ascendemos a Deus, devemos tentar, pelo menos tentar, transmitir aos nossos irmãos algo dessa vida que nos esforçamos por alcançar. Por isso, esqueçam de quem lhes falou mas se lembrem do ensinamento. Esqueçam as imperfeições do mensageiro, não a mensagem. Adorem o Deus cujos ensinamentos estivemos a estudar e perdoem, com sua caridade, os defeitos do servo que os apresentou.